terça-feira, abril 29, 2008

senhor Doutor (III/III)

Não foi pronunciada uma única palavra durante o curto período em que os médicos partilharam a mesma carruagem.
"Este Gajo que nunca mais sai!"- pensou António, mal o metro tinha saído do Marquês de Pombal. Estava sem a mínima disposição para falar de medicina ou de o que quer que fosse!
"Medicina!"- pensou com desdém. O que era a Medicina para ele? Antes era um jogo, um jogo que conseguia ganhar muitas vezes, sem qualquer esforço da sua parte. às vezes dizia a brincar, que a Medicina e mais especificamente a cirurgia, só existia graças às costureiras, que descobriram o "corte e costura", muitos séculos antes, de existir o primeiro médico.
Era isso que a sua profissão era, conversa e mais conversa, uns cortes dali e outro dali. Perdera todo o amor pela aquela luta entre a vida e a morte, em que ele assumia a posição de rei.
"Medicina..."- pensou novamente, quase chorando. A Medicina tinha-lhe roubado a vida. Não tinha quem o amasse, nem um gato ou cão se quer. Não tinha tempo para amar ninguém. Todas as pessoas, amigos e namoradas tinham-no deixado sozinho, naquela luta contra o tempo e o envelhecer.
"Para que serve a Medicina, se não consegue remendar um coração partido?"- pensou, e uma lágrima escorreu-lhe o rosto, empurrando a sua expressão séria.
- Próxima Paragem: Avenida.
- Bom meu colega. Saiu aqui!
Nem se quer se dignou a olhar para o homem. Também ele era fruto daquela profissão que lhe roubara a vida!
- Então adeus.- disse o colega, encolhendo a mão que estendera para o cumprimentar.- Espero que tenha um resto de dia feliz.
- Vou ter- respondeu-lhe, sorrindo, com um olhar lunático.
As portas fecharam-se e o metro avançou, naquele louco ritmo alucinante. Nos Restauradores entrou uma criança barulhenta que foi a cantar a música do Ruca, durante toda a viagem. O seu cérebro estava a latejar, pela irritação que aquela voz aguda lhe causava; e pela energia que de novo fervilhava em si.
"Vou morrer!"- pensou... como um pensamento tão negro lhe poderia trazer tanta felicidade.
- Próxima paragem: Baixa-chiado.
- Vamos sair aqui mamã?
A mãe anuiu, sorrindo parao seu perfeito rapaz de cinco anos.
António sentiu o corpo a desfalecer.
"Por quê isto agora?"
A sua alma estava certa, não o seu corpo. Parecia que aquele ser material não queria deixar de existir!
- Mas quem manda aqui?
- gritou no meio do metro.
Algumas pessoas chamaram-lhe de louco.
- Pró caralho!- disse a uma velhota de bigode, que estava parada ao seu lado e que disse " ai estes cabrões vêem inundar o metro com as parvoeiras"
O metro parou!

- Malcriadão!
António saiu sem olhar para trás. Desta vez tinha pressa. O seu corpo estava a lutar contra a alma. Tinha de ir com a sua morte para a frente, antes que a alma fosse derrotada. Correu, subiu as escadas e desceu as do outro lado, indo pelo atalho que muitos utilizavam.
"Próximo comboio daqui a 7 minutos"
O metro estava atrasado
António sorriu. Em breve, estaria vários minutos atrasados. O seu corpo teria de ser limpo para que o metro pudesse voltar a andar.
- Mamã. Vamos até onde?
- Ao Cais do Sodré.
Olhou para o chão. Ao seu lado estava uma bela menina de caracóis castanhos com uns grandes olhos quase pretos e com um sorriso que o desarmou.
- Olá senhor!- disse sorrindo-lhe
- Filha... não fales com estranhos.
Sem conseguir controlar a cara, António começou a chorar. Soluçava tão audivelmente que as pessoas do outro lado da linha, que esperavam no fim da plataforma, olharam-no com espanto.
Afinal a vida valia a pena. Se calhar só precisava de mudar de vida. Queria ter filhos. Queria ter uma mulher. Queria uma casa onde pudesse morrer sossegado, junto à lareira, lendo um belo poema de António Nobre e ouvindo uma ária de ópera.
O metro estava por essa altura a entrar na plataforma.
- Obrigado! - disse, sorrindo entre os chuviscos que lhe embaciavam os olhos. - obrigado menina. Ajudaste o meu coração.
A menina sorriu outra vez e piscou-lhe o olho. Sorrindo, António avançou, contente pela vida. Contente pela sua existência. Sentia de novo a vontade de salvar vidas. Afinal não era Deus, mas era o seu deus. Era ele que tinha a sua vida nas suas mãos. E nesse momento, a vida batia-lhe como um coração apaixonado, em cada veia do seu corpo.
Avançou, avançou mais um pouco. O metro estava a chegar. Esperaria junto à plataforma...

Então um pé pôs-se à frente do outro e tropeçou. O seu corpo voou, entre os gritos dos que esperavam pelo metro. Viu a sua vida a passar pelos olhos e sentiu-se a morrer, mesmo antes do metro o tocar, ou de cair para a linha. Afinal havia alguém a reger o seu tempo. Não era Deus, nem o demónio, nem ele. Era o simples e confuso destino, que como ele, tropeçava nos pés e nas mãos.
A última coisa que viu, foi o sorriso daquela menina de caracóis castanhos e olhos quase pretos, a desvanecer-se, a dissolver-se nos seus últimos segundos de vida, marcados pelo seu velho e caríssimo relógio de pulso.

4 Comments:

Blogger Greenish Fae said...

ADOREI!! Esta shortstory está genial!

30/4/08 09:44  
Anonymous Anónimo said...

Este comentário foi removido pelo autor.

30/4/08 14:13  
Blogger fairy dust said...

BRU-TAL!!!!

Tão depressa nenhum monstro faz uma coisa que chegue sequer aos calcanhares desta mini serie.

question: os olhos negros da menina são importantes? porquê? Acho o pormenor genial, mas não o entendo...

30/4/08 16:11  
Anonymous Anónimo said...

Credo! Não achei a minha mais brilhante criação, mas se dizem, OBRIGADO!:p.
Gostei de escrever esta short story. Sinceramente preciso de tirar umas Vacances das lonnnng stories. Ainda não recuperei da contagem xD.

Mé, não tem um significado especial. Só me apeteceu ser diferente. Geralmente estas crianças com os olhos doces e grandes, são loiras de olhos azuis ou verdes. Achei que o mais comum dos mortais poderia ser tão belo como uma criatura angelical.

OBRIGADO AS DUAS NOVAMENTE ;). Já ganhei o dia ;)

30/4/08 17:37  

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