quinta-feira, maio 10, 2007

Contagem regressiva para o fim da alma - 14º dia - I

01:30

A ambulância gritava entrando no hospital. Lá dentro... um ser inanimado, perdendo litros de vida, deixava-se levar, sem resistência, sem luta, sem se quer consciência. Trazia no coração as chagas da alma e no corpo as chagas da tesoura azul, com que sempre recortara os papéis e desenhos que levava para os seus meninos na terapia da fala.
- Está a patinar não tarda....
- Já perdeu demasiado sangue....
E assim lá os ouvia, lá no fundo da sua alma, aquela perdida pessoa. Aos poucos se perdeu, dentro da sua consciência...gritava de dores por dentro, a alma estava ferida... o seu corpo... lentamente, o seu corpo se esquecia de que existia. Foi então que recordou....

*
- És mesmo parvinho, sabias?
- Tu gostas!
Sorri-lhe. Ele a mim. Os seus dentes não eram perfeitos... mas que importava. Todo ele, na sua existência de um ano, sim... porque só existia para mim fazia um ano, era perfeito. Pura expressão de Beleza interior e exterior.
Todas as sextas me trazia rosas. "Sim, sempre gostei de rosas", como certo dia escrevi num poema qualquer, sobre a minha morte. O meu mundo estava coberto de ouro, qual Camelot! Estava em paz... era amado... ERA FELIZ.
Beijamo-nos naquele momento, e o mundo parou.
- Que vais fazer a casa desse advogado da treta?
- Vou tratar de uns assuntos... Tens muito a ver com isso.
E de novo aquele sorriso. A minha alma alegrou-se por mais uma vez...estava em paz... era amado...ERA FELIZ.
*
01:42
- O ritmo cardíaco estabilizou... - disse um dos bombeiros por fim...
Entrei nas urgências do Hospital de Santa Maria e fui logo para o bloco operatório.
- Elá!!! Bela perfuração. Isto vai demorar umas 4 horas a cozer...
E assim fui submetido à sua vontade. Os médicos desinfectaram-se e começaram a operação.
Por breves momentos, voltei à consciência. A dor da alma tornou-se de novo real e a do corpo ainda mais. Parecia que me tinham enfiado uma mão cheia de pregos na barriga, com toda a força. No braço, uma agulha perfurava-me a pele, para me encher de novo do líquido da vida... sangue O-, o único que o meu corpo podia tolerar. Senti uma máscara a mergulhar na minha cara... de novo mergulhei para lá do consciente, na profundidade de meu sofrer.
*
- Ah ah aha! és uma menina!
- Não sou...
- És sim.
Uma criança se sentava chorando, colhendo os joelhos junto ao peito, segurando-os com as mãos. Há sua volta, crianças maldosas e cruéis o chutavam e o dedo lhe apontavam. O meu eu, o eu alma, levantáva-se junto À criança, observando-a. Trazia-se sério e altivo. Superior à meninada.
- És uma menina! Não queres jogar futebol, é porque és uma menina!
- Não sou nada! Não gosto de futebol!
- Menina! Menina!
Lá berravam eles. Então, uma outra criança, mais pequena que a criança que fora eu em tempos, chegou. Sorriu maldosamente e as outras afastou.
- Ele não é uma menina! Ele é um paneleiro!
A criança que chorava levantou os olhos lacrimejantes. O que era isso? Nenhuma delas sabia...nem mesmo a criança de olhos maldosos e sorriso demoníaco. Só o meu eu sabia... o meu eu alma, que agora trazia a desilusão e melancolia no rosto... Quem dizia mesmo, que as crianças são inocentes?
*
02:09
- Doutor! Está em paragem cardíaca!
Piiiiiiiiiiiiiii. A máquina marcava. Sem vida, sem vontade de viver. O trauma da minha vida me fazia a alma parar. Quanta tristeza numa infância. Quanta dureza... quanta crueldade para um ser. O seu coração estava a ceder...
- Equipamento para desfibrilização, senhora enfermeira.
Aqueles aparelhos eléctricos, que vemos tantas vezes nas séries americana, deslizaram sobre mim, dando um grande choque sobre a parede do coração. Uma vez... duas vezes... três vezes...Quatro vezes... e o meu coração de novo voltou a bater. Aquela memória tinha sido superada... aquele memória estava de novo perdida dentro da minha alma, lá bem longe, recalcada na imensidão do meu ser...
*
02:23
- Deus me livre!
- O quê, mãe?
A minha mãe sentava-se no sofá vendo uma telenovela qualquer brasileira. Nela, um filho dizia aos seus pais que era gay. Fora do ecrã, uma criança com 12 anos estava de pé. Mais uma vez, lá estava o meu fantasma. Pairando sobre ela, com um ar triste deixado pela memória anterior.
- Então... este homem é paneleiro...Deus me livre ter um filho assim.
Aquela palavra... cravada no meu peito. Senti um velho espigão furar-me o peito bem fundo, talvez por ela, talvez pela repugnância de minha mãe. Não sabia é certo o que eu era... Era cedo, nem sabia nem queria saber do que era o amor. Queria os meus jogos, os meus amigos e superar o medo de xumbar a alguma disciplina.
Mais uma vez, o espectro se entristeceu... Mais que triste, estava taciturno...trazia na cara e ao peito, o seu sofrer
...
*
02:30
- Outra vez?
- O que lhe damos doutor? - perguntou a enfermeira... e lá um nome qualquer soou., daqueles estranhos que talvez a Pipa conhecesse.
O meu coração parara outra vez. Era como se não quisesse bater... ou seria eu que não queria viver? Choques atrás de choques e nada... não queria acordar...
*
- Que estás a fazer?
- Vizinha? Que está a fazer aqui?
Vanessa, a psicóloga erguia-se à minha frente. Não percebia a ligação. Estava o meu eu com ela a fazer o quê? Nunca tinhamos falado!
- Estou aqui para ajudar-te a lutar.
- E se eu não quiser...
- Então estarás a desistir e a desiludir quem te quer bem.
- E eles? Não me desiludiram eles?
- Sim... mas queres ser como eles, ou mudar?
O seu reflexo desapareceu. Estava sozinho na minha memória. Falando para mim... Todos desiludimos alguém...Somos humanos...Mas podia eu desiludir-me a mim?
*
02:44
- Estabilizou doutor...
- Ufa...Vá lá rapaz. Só te podemos salvar, se quiseres viver...

3 Comments:

Blogger Pips said...

Ora lá está, só se quiseres viver... Mas esta parte foi muito deprê! =\ a vida já é muito complicada, imagino quanto mais será tendo de ouvir certas coisas...

Bjs ***

10/5/07 20:17  
Anonymous Anónimo said...

Sabias que eu te admiro? E hoje muito mais! Em muitos dias gostava de ter um bocadinho que fosse da tua coragem. Não é deprê...é lindo. E fez-me descobrir que quero viver...em boa parte por ti =)

10/5/07 20:34  
Anonymous Anónimo said...

Pois é... a vida nunca foi muito facil para mim. E queriam voces k eu nao fosse disfuncional e deprimido!:P Mas sim. A vida vale a pena. Mé não te esqueças disso! Pipes, obrigado por tudo. Nestas fases em k ouvi muita merda, o simples facto de ter alguem para brincar ajudou-me. Me, tu ajudaste me mais tarde. Quando te tornaste minha maninha! ;). Love yousss

10/5/07 21:58  

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