quinta-feira, junho 07, 2007

Contagem regressiva para o fim da alma - 7º dia

" Caro colega.
Venho por este meio responder à sua carta relativa à criança Susana Martins. Mediante os dados da avaliação da linguagem..."

- Que merda! Isto hoje não me sai!!!- escrevia pela terceira vez aquela carta para o psicólogo.
Subitamente, aquele olhar, bloqueou-me a visão. A sua fotografia, pousada sobe a minha metálica secretária, olhava-me penetrantemente.
- PÁRA! - gritei para ele. Mas também? Porque tinha eu ainda a sua fotografia no meu consultório?
- Trim, trim. - o telefone tocou.
- Estou.
- Estou gajo bom... quero-te conhecer...
- Pipa...
- Oh! Era suposto não perceberes que era eu!
- Pipa, tu só tapaste o nariz. Já te ouvi constipada antes, sim? Então diga lá estrabeca, o que quer?
- Nada...- a sua voz mudara de tom.
- O que se passa?
- Nada, só queria falar.- definitivamente algo se passava. Filipa estava do outro lado, com uma voz séria e com a fala intercortada. Não me parecia triste, nem alegre. Talvez só desconfiada ou irritada.
- Filipa Maria que se passa, diz-me já imediatamente, ou eu vou aí ao teu laboratório e danço nu em cima das vossas experiências.
Do outro lado, um riso se fez ouvir. Já mais descontraída, pipa falou.
- É o Pedro... está, distante.
- hmmm. E tens alguma ideia por quê?
- Nem por isso. Telefonei a ver se sabias... és gajo e tal...
- Também sou gay e tal e não percebo nada de heteros!
- Bah! Não serve para nada a bicheza!
- Olhe, estrabéquia! Ele é seu namorado! Você é que devia saber!
Naquele momento, senti de novo aquele olhar sobre mim. Ele já não me era nada, nem se quer amigo. Então porque é que qualquer menção a qualquer tipo de relação desencadeava aquela reacção? Abanei a cabeça.
- Enfim... acho que deve ser só imaginação minha!
- Talvez. - estava já desligado da conversa.
Como sempre, sem bater, Rosa entrou no consultório.
- Doutor. Está aqui a Susanita!
- Pipa, tenho de desligar. Chegou a minha paciente.
- Tá. Depois falamos!
Desliguei o telefone e levantei-me, caminhando para a sala de espera.
*
- Tou Joana. Oi!
- Mary, diz o que queres. - Joana respondia despachando-a.
- Ui! Má altura?
-Um bocado. O chefe está-nos a dar uma descasca! Não podes ligar mais tarde?
- Oooo. Tá bem.
Mariana desligou o telefone, entristecida. Queria falar com alguém. Queria só desabafar, dizer baboseiras e parvoíces. Queria sair dali, do seu pequeno escritório, onde controlava os seus interesses e o seu patrão. Já para não falar do seu trabalho dito oficial.
- Oh não! Ainda me faltam estes ficheiros todos! - Mariana suspirou e começou a trabalhar. Tinha de arquivar pastas atrás de pastas para aquele porco do seu patrão. Mas também, era ele que lhe pagava o ordenado e era ele que a satisfazia no departamento do sexo. No do amor? Ninguém tinha ocupado o lugar. Sentia em si um vazio que todos os dias escarafunchava e abria as feridas da sua alma.
- Que é isto? - no meio dos papéis, uma carta amarelada, cheia de manchas de café aparecia.
Mariana começou a ler:
"Doutor Sampaio Neves. Recuso a sua proposta. É totalmente descabida e até ofensiva. Se não se importa, vá apanhar no ..."- Mariana engoliu em seco.
- Ui... um cliente desagradado!- disse rindo-se e continuou a ler
"Quando a sua proposta melhorar significativamente (no valor acordado), eu retirarei a queixa que tenho contra si, na polícia. Até lá. Passe mal!"
A assinatura estava borrada. Uma grande gota de café tinha caído sobre ela. Só duas letras estavam visíveis.
- A... L...Alberto? Será?
Quem quer que fosse parecia determinado a acabar com a vida de alguém se assim fosse preciso...
*
- Pronto. Por hoje é tudo, Susanita.
- Adeus senhor terapeuta.
- Adeus Dona Guilhermina.
Exausto de mais uma dia de vida, atirei-me com toda a força contra a cadeira.
- Bom. Vamos lá escrever a carta.
" Caro colega.

Venho por este meio responder à sua carta relativa à criança Susana Martins. Mediante os dados da avaliação da linguagem e da anamnese, venho conclu..
- Porreiro. Raio da caneta, está sem tinta.
Insisti um pouco, riscando um pedaço de papel. Nada. Voltei a insistir e outra vez e lá voltou ela a escrever:
"Concluir que apresenta"
- Que treta!- voltei a riscar o papel e outra vez e consegui escrever mais duas palavras, mas parecia que a caneta tinha mesmo chegado ao fim. Subitamente, aquele olhar... aquele olhar da foto sorridente de Bernardo, penetrou-me a alma novamente...
Havia coisas, que por muito que insistíssemos, só conseguiam aguentar-se por períodos pequenos... Aquela caneta era uma delas. Por muito que riscasse, só a reanimava por segundos, para a ver morrer outra vez. Estaria eu a tarde naquilo ou desistiria? Ela estava condenada a extinguir-se daí a poucos minutos...
- Hmmm- murmurei. E olhando para aquela foto, compreendi. Chegara o momento de deitar a caneta e a foto para o lixo...

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Adorei a metáfora da caneta

7/6/07 15:19  
Anonymous Anónimo said...

me2...
e axo kpelo menos um bocadinho me iluminaste hj...
merci*

7/6/07 16:23  
Anonymous Anónimo said...

E tu a mim! ;) O brigado pela inspiração. E obrigado minha caneta que foi parar ao lixo tb!!!

Me, ainda bem que gostate! Eu tb :P

7/6/07 17:21  

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