senhor Doutor (III/III)
Não foi pronunciada uma única palavra durante o curto período em que os médicos partilharam a mesma carruagem.
"Este Gajo que nunca mais sai!"- pensou António, mal o metro tinha saído do Marquês de Pombal. Estava sem a mínima disposição para falar de medicina ou de o que quer que fosse!
"Medicina!"- pensou com desdém. O que era a Medicina para ele? Antes era um jogo, um jogo que conseguia ganhar muitas vezes, sem qualquer esforço da sua parte. às vezes dizia a brincar, que a Medicina e mais especificamente a cirurgia, só existia graças às costureiras, que descobriram o "corte e costura", muitos séculos antes, de existir o primeiro médico.
Era isso que a sua profissão era, conversa e mais conversa, uns cortes dali e outro dali. Perdera todo o amor pela aquela luta entre a vida e a morte, em que ele assumia a posição de rei.
"Medicina..."- pensou novamente, quase chorando. A Medicina tinha-lhe roubado a vida. Não tinha quem o amasse, nem um gato ou cão se quer. Não tinha tempo para amar ninguém. Todas as pessoas, amigos e namoradas tinham-no deixado sozinho, naquela luta contra o tempo e o envelhecer.
"Para que serve a Medicina, se não consegue remendar um coração partido?"- pensou, e uma lágrima escorreu-lhe o rosto, empurrando a sua expressão séria.
- Próxima Paragem: Avenida.
- Bom meu colega. Saiu aqui!
Nem se quer se dignou a olhar para o homem. Também ele era fruto daquela profissão que lhe roubara a vida!
- Então adeus.- disse o colega, encolhendo a mão que estendera para o cumprimentar.- Espero que tenha um resto de dia feliz.
- Vou ter- respondeu-lhe, sorrindo, com um olhar lunático.
As portas fecharam-se e o metro avançou, naquele louco ritmo alucinante. Nos Restauradores entrou uma criança barulhenta que foi a cantar a música do Ruca, durante toda a viagem. O seu cérebro estava a latejar, pela irritação que aquela voz aguda lhe causava; e pela energia que de novo fervilhava em si. "Vou morrer!"- pensou... como um pensamento tão negro lhe poderia trazer tanta felicidade.
- Próxima paragem: Baixa-chiado.
- Vamos sair aqui mamã?
A mãe anuiu, sorrindo parao seu perfeito rapaz de cinco anos.
António sentiu o corpo a desfalecer.
"Por quê isto agora?"
A sua alma estava certa, não o seu corpo. Parecia que aquele ser material não queria deixar de existir!
- Mas quem manda aqui? - gritou no meio do metro.
Algumas pessoas chamaram-lhe de louco.
- Pró caralho!- disse a uma velhota de bigode, que estava parada ao seu lado e que disse " ai estes cabrões vêem inundar o metro com as parvoeiras"
O metro parou!
- Malcriadão!
António saiu sem olhar para trás. Desta vez tinha pressa. O seu corpo estava a lutar contra a alma. Tinha de ir com a sua morte para a frente, antes que a alma fosse derrotada. Correu, subiu as escadas e desceu as do outro lado, indo pelo atalho que muitos utilizavam.
"Próximo comboio daqui a 7 minutos"
O metro estava atrasado
António sorriu. Em breve, estaria vários minutos atrasados. O seu corpo teria de ser limpo para que o metro pudesse voltar a andar.
- Mamã. Vamos até onde?
- Ao Cais do Sodré.
Olhou para o chão. Ao seu lado estava uma bela menina de caracóis castanhos com uns grandes olhos quase pretos e com um sorriso que o desarmou.
- Olá senhor!- disse sorrindo-lhe
- Filha... não fales com estranhos.
Sem conseguir controlar a cara, António começou a chorar. Soluçava tão audivelmente que as pessoas do outro lado da linha, que esperavam no fim da plataforma, olharam-no com espanto.
Afinal a vida valia a pena. Se calhar só precisava de mudar de vida. Queria ter filhos. Queria ter uma mulher. Queria uma casa onde pudesse morrer sossegado, junto à lareira, lendo um belo poema de António Nobre e ouvindo uma ária de ópera.
O metro estava por essa altura a entrar na plataforma.
- Obrigado! - disse, sorrindo entre os chuviscos que lhe embaciavam os olhos. - obrigado menina. Ajudaste o meu coração.
A menina sorriu outra vez e piscou-lhe o olho. Sorrindo, António avançou, contente pela vida. Contente pela sua existência. Sentia de novo a vontade de salvar vidas. Afinal não era Deus, mas era o seu deus. Era ele que tinha a sua vida nas suas mãos. E nesse momento, a vida batia-lhe como um coração apaixonado, em cada veia do seu corpo.
Avançou, avançou mais um pouco. O metro estava a chegar. Esperaria junto à plataforma...
Então um pé pôs-se à frente do outro e tropeçou. O seu corpo voou, entre os gritos dos que esperavam pelo metro. Viu a sua vida a passar pelos olhos e sentiu-se a morrer, mesmo antes do metro o tocar, ou de cair para a linha. Afinal havia alguém a reger o seu tempo. Não era Deus, nem o demónio, nem ele. Era o simples e confuso destino, que como ele, tropeçava nos pés e nas mãos.
A última coisa que viu, foi o sorriso daquela menina de caracóis castanhos e olhos quase pretos, a desvanecer-se, a dissolver-se nos seus últimos segundos de vida, marcados pelo seu velho e caríssimo relógio de pulso.
"Este Gajo que nunca mais sai!"- pensou António, mal o metro tinha saído do Marquês de Pombal. Estava sem a mínima disposição para falar de medicina ou de o que quer que fosse!
"Medicina!"- pensou com desdém. O que era a Medicina para ele? Antes era um jogo, um jogo que conseguia ganhar muitas vezes, sem qualquer esforço da sua parte. às vezes dizia a brincar, que a Medicina e mais especificamente a cirurgia, só existia graças às costureiras, que descobriram o "corte e costura", muitos séculos antes, de existir o primeiro médico.
Era isso que a sua profissão era, conversa e mais conversa, uns cortes dali e outro dali. Perdera todo o amor pela aquela luta entre a vida e a morte, em que ele assumia a posição de rei.
"Medicina..."- pensou novamente, quase chorando. A Medicina tinha-lhe roubado a vida. Não tinha quem o amasse, nem um gato ou cão se quer. Não tinha tempo para amar ninguém. Todas as pessoas, amigos e namoradas tinham-no deixado sozinho, naquela luta contra o tempo e o envelhecer.
"Para que serve a Medicina, se não consegue remendar um coração partido?"- pensou, e uma lágrima escorreu-lhe o rosto, empurrando a sua expressão séria.
- Próxima Paragem: Avenida.
- Bom meu colega. Saiu aqui!
Nem se quer se dignou a olhar para o homem. Também ele era fruto daquela profissão que lhe roubara a vida!
- Então adeus.- disse o colega, encolhendo a mão que estendera para o cumprimentar.- Espero que tenha um resto de dia feliz.
- Vou ter- respondeu-lhe, sorrindo, com um olhar lunático.
As portas fecharam-se e o metro avançou, naquele louco ritmo alucinante. Nos Restauradores entrou uma criança barulhenta que foi a cantar a música do Ruca, durante toda a viagem. O seu cérebro estava a latejar, pela irritação que aquela voz aguda lhe causava; e pela energia que de novo fervilhava em si. "Vou morrer!"- pensou... como um pensamento tão negro lhe poderia trazer tanta felicidade.
- Próxima paragem: Baixa-chiado.
- Vamos sair aqui mamã?
A mãe anuiu, sorrindo parao seu perfeito rapaz de cinco anos.
António sentiu o corpo a desfalecer.
"Por quê isto agora?"
A sua alma estava certa, não o seu corpo. Parecia que aquele ser material não queria deixar de existir!
- Mas quem manda aqui? - gritou no meio do metro.
Algumas pessoas chamaram-lhe de louco.
- Pró caralho!- disse a uma velhota de bigode, que estava parada ao seu lado e que disse " ai estes cabrões vêem inundar o metro com as parvoeiras"
O metro parou!
- Malcriadão!
António saiu sem olhar para trás. Desta vez tinha pressa. O seu corpo estava a lutar contra a alma. Tinha de ir com a sua morte para a frente, antes que a alma fosse derrotada. Correu, subiu as escadas e desceu as do outro lado, indo pelo atalho que muitos utilizavam.
"Próximo comboio daqui a 7 minutos"
O metro estava atrasado
António sorriu. Em breve, estaria vários minutos atrasados. O seu corpo teria de ser limpo para que o metro pudesse voltar a andar.
- Mamã. Vamos até onde?
- Ao Cais do Sodré.
Olhou para o chão. Ao seu lado estava uma bela menina de caracóis castanhos com uns grandes olhos quase pretos e com um sorriso que o desarmou.
- Olá senhor!- disse sorrindo-lhe
- Filha... não fales com estranhos.
Sem conseguir controlar a cara, António começou a chorar. Soluçava tão audivelmente que as pessoas do outro lado da linha, que esperavam no fim da plataforma, olharam-no com espanto.
Afinal a vida valia a pena. Se calhar só precisava de mudar de vida. Queria ter filhos. Queria ter uma mulher. Queria uma casa onde pudesse morrer sossegado, junto à lareira, lendo um belo poema de António Nobre e ouvindo uma ária de ópera.
O metro estava por essa altura a entrar na plataforma.
- Obrigado! - disse, sorrindo entre os chuviscos que lhe embaciavam os olhos. - obrigado menina. Ajudaste o meu coração.
A menina sorriu outra vez e piscou-lhe o olho. Sorrindo, António avançou, contente pela vida. Contente pela sua existência. Sentia de novo a vontade de salvar vidas. Afinal não era Deus, mas era o seu deus. Era ele que tinha a sua vida nas suas mãos. E nesse momento, a vida batia-lhe como um coração apaixonado, em cada veia do seu corpo.
Avançou, avançou mais um pouco. O metro estava a chegar. Esperaria junto à plataforma...
Então um pé pôs-se à frente do outro e tropeçou. O seu corpo voou, entre os gritos dos que esperavam pelo metro. Viu a sua vida a passar pelos olhos e sentiu-se a morrer, mesmo antes do metro o tocar, ou de cair para a linha. Afinal havia alguém a reger o seu tempo. Não era Deus, nem o demónio, nem ele. Era o simples e confuso destino, que como ele, tropeçava nos pés e nas mãos.
A última coisa que viu, foi o sorriso daquela menina de caracóis castanhos e olhos quase pretos, a desvanecer-se, a dissolver-se nos seus últimos segundos de vida, marcados pelo seu velho e caríssimo relógio de pulso.