O Espelho, as meias e o gorro
Hoje, o espelho não era uma imagem de si.
Carmelo tinha tido, como em tempos a sua avó tivera, um acesso de loucura incompreensível. Estava num daqueles momentos de felicidade inexprimivel, uma daquelas felicidades das quais guardamos segredo por nem sequer saber que são felicidades reais.O espelho mostrava a alegria triunfante. Carmelo tinha escondido todos os traços femininos do seu ser dentro das roupas do pai que tinham ficado em sua casa (porque nunca voltara ele para resgatar aqueles reféns?). Tinha criado até uma certa ilusão com meias enroladas dentro dos velhos jeans. A camisa ainda tinha aquele cheiro entre o perfume e o after shave. Não lhe parecia o cheiro do pai: era o cheiro que ela teria se fosse um homem.
Olhou-se no espelho e sorriu. Não estava ainda satisfeita. Escondeu os cabelos longos dentro do gorro. Sempre adorara aquele gorro: era vermelho e preto e tinha o símbolo dos chicago bulls na frente. Era um presente de alguém que agora não recordava. Nunca o usara na rua. Era tão masculino que não se atrevia a saír de casa com ele. Mas hoje estava na segurança da sua casa e do seu espelho.
Sorriu com o resultado. Sorriu a si mesma. O rapaz que estava no espelho seduzia a menina que o olhava de frente e não podia tirar os olhos dele.
Ela teria sido um homem bonito. Ela tinha o direito de ter sido um homem. O que se passava com o Mundo? Ela era talentosa, ela esforçava-se...ela tinha o direito de ter nascido do outro lado do espelho. Ela tinha o direito de ter aquele sorriso triunfante. Ela tinha o direito de não ser agradável para pessoas que não conhecia. Ela tinha o direito de dizer palavrões, de bater em mesas, de gritar, de saír de casa e não se sentir uma irresponsável. Ela tinha o direito de não querer casar sem que sentissem pena dela. Ela tinha direitos pequenos mas infinitos que lhe eram negados por nascença.
O reflexo sorriu-lhe...e Carmelo lembrou-se de que ainda era uma grande mulher por detrás de um grande homem...