sexta-feira, março 21, 2008

Senhor Doutor (II/III) - com bolinha vermelha!

- Senhor Doutor?- Por momentos permitiu à sua mente divagar para anos anteriores, quase esquecidos por entre as velharias do inconsciente do Doutor António.
- Sim?- Disse na sua voz trémula, de interno. Aquele era o primeiro dia da sua especialidade. Estava acagaçado com medo de matar alguém logo no primeiro dia.
- Temos uma operação no bloco que deveria ver. - quem falava era a enfermeira Isabel. Os seus belos 20 e poucos anos brilhavam com luz sobre a água. A sua juventude transbordava daquele uniforme. António sentiu-se corar, por pensar tamanhas coisas. Ela era de facto da sua idade...
- Sim... Senhora enfermeira...
- Sim?
- Gostaria de sair... comigo esta noite.
A enfermeira riu desenfreadamente na sua cara. António nem lhe deu tempo para responder. Correu escada acima, do piso 3 ao piso 4, para então se chafurdar no sangue dos doentes.

*
Próxima paragem..... Marquês de Pombal.
Naquele dia, a linha amarela estava com muito pouco movimento. Decidiu então mudar para a linha azul. Queria que a sua morte fosse um espectáculo. Que todos os vissem a esturricar naquela linha carregada de energia suficiente para o fazer derreter....
Queria que todos vissem os seus miolos a voarem para todo o lado.
Naquele dia o seu sadismo estava mais do que aguçado.
Saiu então naquela estação toda bem decorada e caminhou para a linha azul, onde seria o seu último destino...
Caminhou lentamente pela estação, fazendo aquele caminho lento de pessoas suadas, que se empurravam umas as outras.
"Boa! Estão a começar a chegar!"- pensou ele. De todos os lados começavam a surgir pessoas vindas do exterior. Traziam os seus olhos postos no vazio, como sempre. Mas em breve, aqueles olhos tornar-se-iam câmaras fotográficas, que sem flash, registariam o seu fim.
Chegou então àquelas escadas de pedra, que davam para a plataforma verde escura e sombria. Sempre detestara aquela plataforma. Parecia retirada de um filme de terror.
"Que melhor sítio?"- pensou.
Estava tão absorto nos seus pensamentos, que nem reparou que o metro estava a chegar.
*
- Bom trabalho!- disse o seu tutor, ao fim de 4 operações. - pode ir almoçar. Depois vá ter às urgências comigo.
E assim o fez. Na escada cruzou-se com a enfermeira Isabel que o olhou sorridente e lhe tentou falar. Não parou se quer... acelerando o passo desceu a escadaria em direcção ao refeitório.
Teve cerca de 30 minutos para almoçar. Nesse dia degustou cada pedaço de carne... cada pedaço de pão. Cada pedaço de existência e sucesso. Terminara o curso de Medicina com média de 19,6. Teria tido 20, não fosse ter tido um 16 num trabalho.
"Que medíocre!"- pensou.
Em breve, ou melhor, daí a três anos, estaria a trabalhar ali, como Otorrino. E quem sabe, daí a uns tantos anos, não seria Director do Serviço.
O que lhe interessava, como grande parte dos seus colegas, era o poder. O poder e a sensação de se armar em Deus, cortando aqui e costurando acolá. Era tudo. Era ele quem comandava a vida. Era ele que ditava quem vivia e quem morria.
Subitamente o seu Pager começou a apitar.
- Quem é agora...- resmungou.
Era a enfermeira Isabel.
Correu escada a cima. O que se passaria?
Chegou então ao piso 4.
- O que se passa.
- Um senhor necessita da sua ajuda. Não há mais médicos aqui.
- Ok! O que se passa?
- Caiu-lhe um objecto pesado em cima da laringe. Esmagou-a....
Um arrepio arranhou-lhe a espinha. Mesmo assim, não transpareceu nenhuma emoção.
Vestiu a bata verde a correr e foi juntar-se À equipa de salvamento, dizendo para si próprio: "Sou maior que Deus! Eu decido quem vive.... e este senhor vai viver!"
*
- Bolas! Perdi o metro! - exclamou irritado
- Não se preocupe. Eles vêm de 5 em 5 minutos. - sorriu-lhe uma velhota.
Por dentro teve vontade de rir à gargalhada. " Sua velha decrépita! Vais ser a primeira a ver-me partir! E com sorte, ainda vens atrás! Eu sou Deus! Sou eu que decido quem morre! E Hoje morro eu!"
Os seus pensamentos obscuros adensavam-se a cada segundo. Estava descontrolado, a fervilhar naquela adrenalina que lhe escorria pelas artérias e que em breve estaria espalhada pela estação.
Olhou em frente. Viu um borrão estranho na parede verde. Seria Sangue? Alguém já o teria feito ali? Nem quis pensar mais no assunto. Ele seria o homem do momento, mais ninguém.
Uma campainha por cima da sua cabeça apitou.
-Senhores utentes. Devido a problemas técnicos, o metro chegará 10 minutos atrasado.
A adrenalina subiu. Apeteceu-lhe atirar-se de imediato para a linha.
- Calma! Acalma-te. Não estragues o espectáculo!- começou então a dizer na sua cabeça alguma palavras que queria dizer NO momento. Vieram-lhe à cabeça palavras todas desorganizadas. Não as conseguia organizar. Decidiu então que a sua morte seria silenciosa. Que melhor banda sonora que o seu cérebro a rebentar para fora do crânio?
*
- Estamos a perdê-lo!
- Mais sangue- gritou António. Mas já era tarde. Naquele dia, António percebeu que não era Deus. Era um simples mortal que não fazia milagres. A vida daquele doente esvaziava-se com o sangue que escorria pela sua garganta aberta.
A banda sonora mudou e em vez daquele Tic tão rápido e incessante, ouviu-se um longo Pi... marcando o fim de uma existência.
*
- Vem ai!- uma nova campainha dizia que estava a chegar o metro. O seu coração começou a bater mais forte, como se quisesse rebentar o peito e vir cá para fora. Sorriu. Também haveria de ser uma morte engraçada. O metro estava a aproximar-se! Ó que felicidade! Recuou uns passos para dar balanço e começou a correr. O metro já se via! Ia chocar mesmo contra o seu corpo inerte!
"Adeus vida estúpida e cruel. Eu sou Deus! Eu vou morrer Hoje!"- e desatou a correr.
- OLÁ ANTÓNIO! Como vai isso?- uma mão o agarrara mesmo perto da plataforma.
- Domingos.... que bom... já não nos víamos há anos! -disse com vontade de o atirar para a linha. O metro já havia parado. E os seus espectadores fugiam para dentro dele. O espectáculo estava perdido, naquela estação. Tentaria noutra, assim que conseguisse. Caminhou para o metro, com o seu colega Domingos Almodis atrás.
- Pois é! Então como vai os ouvidos e as gargantas das pessoas? - disse troçando.
- Vão bem? E as borbulhas e as celulites das pessoas? - ripostou. - sais em que estação?
- Avenida.
- ÓPTIMO! Eu saiu na Baixa!

segunda-feira, março 17, 2008

Ver o Morto - perdidos

Victoria encostou-se à porta do quarto vizinho ao seu. O silêncio do corredor fazia cada acorde da guitarra ecoar. Conseguia distinguir uma voz rouca e um improviso de poema a flutuar nela. "A blond fairy sleeping next to me". O sorriso na sua alma estendeu-se ao seu corpo. Desde a madrugada desse dia que ouvia aquela doce música. Pensou que tinha sonhado. Mas não. E a verdade daquele som fazia um rubor subir-lhe ao rosto pálido.

Queria entrar. Queria falar com o seu poeta. Ela era uma fada e tinha um devoto. Naquele dia, naquele sítio, alguém lhe cantava um louvor como se ela fosse merecedora dele. Seria?

Estava perante ela. A primeira vez que tinha a possibilidade de gritar a sua liberdade com um gesto: encontrar os lábios que a louvavam com os seus. Não ia pensar no pai, não ia pensar em Matt, não ia pensar que tinha de partir nesse mesmo dia...não ia pensar.

*

- Quero ver a campa de Mozart!

O mau humor de João subiu com a exigência clara da voz de Vera. Estava cansado, não dormia o que precisava há demasiado tempo e a comida de viagem ameaçava matá-lo em breve. Estava farto de cidades, farto de museus, farto de arte, farto de fotografias, farto de colchões rijos.

- Não vamos ver mortos. Quero ir para casa.

A irritação de João subiu mais dez pontos na escala quando Matt poisou a mão em cima da de Vera e declarou muito sério:

- Eu concordo com a Vera e vou com ela ver o morto.
- Matt!!
- Que foi?

Havia uma cumplicidade que escapava à compreensão de João e que o irritava além do limite aceitável. Ele é que devia sentar-se ao lado da Vera. Sempre tinha sido assim. Queria ir para casa e ter a sua vida normal de volta. Esta não era a Vera. Preferia que ela chorasse nos braços dele. Aquela alegria falsa em volta de Matt não era a Vera.
Virou-se para Bárbara.

- Não queres ir para casa? - esperava que ela estivesse ansiosa por rever Nívea.
- Bem...é cedo ainda para ir para casa, não? - o tom nervoso denunciou que Barbara não fazia ideia do que fazer quando voltasse a casa.

- Então, está decidido. Ficamos e vemos o morto!
- Ainda não sabes o que a Vicky pensa...

Uma figura pequena e afogueada entrou de rompante para tomar o pequeno almoço.

- Podemos ficar mais um dia? - perguntou Vicky, olhando fixamente para a tigela de cereais.

- Oh, perfeito... - João perdera a última arma para lutar contra os amigos. Ficavam...e iam ver o morto.

sábado, março 08, 2008

Achados XI - Ruptura



- Ó Minha cabra, larga-me o cabelo!- gritava Sofia a Zandra, tentando-se se soltar daquelas finas mãos esquálidas, tão frágeis, mas no entanto, com tanta força. As lágrimas vinham-lhe aos olhos cada vez que puxava acidentalmente o seu cabelo.
- Não te vou largar! Enquanto não me disseres que não o vais fazer!
- Por quê? Queres exclusividade é?
Pipi e Miriam olhavam um para o outro, à porta dos seus quartos. Estavam no norte de Itália, numa pequena cidade chamada Belluno. A cidade não tinha grande coisa para oferecer. Estavam apenas muito cansados da viagem de comboio desde Austria, e por isso, decidiram parar numa estalagem no norte do país.
- O que se terá passado? - perguntou Miriam ao amigo.
Pipi estava muito calmo nesse dia. Aliás, desde que vira o tal rapaz na estação de comboio, que não fazia outra coisa senão fantasiar com ele. Imaginava-o junto a si, conversando, dando-lhe as mãos. Pela primeira consegui-se ver numa relação sem que a associasse de imediato ao sexo.
- Não sei. Quando acordei estavam estas duas loucas no corredor, à batatada. Depois fui-te acordar.
Naquela noite Marco e Miriam tinha dormido separados. Na noite anterior, tinham discutido. Marco queria ir a Veneza apenas com Miriam. Ela queria ficar junto do grupo. Afinal, aqueles os dois tinham sido a sua família, nesse último mês. Resumindo, houve gritos do Marco, choros da Miriam, depois gritos da Miriam e choros do Marco. Decidiram que nessa noite iriam dormir sozinhos. Marco fechou-se no quarto. Zandra e Sofia foram obrigadas a dormir no mesmo quarto. E Miriam decidiu enroscar-se nos lençóis seguros de Filipe.
- AI!- gritava agora Zandra. o Seu cabelo ficara preso à pulseira barata de Sofia. à sua volta, um aglomerado de pessoas começava-se a juntar. Queriam ver as loucas aos pontapés e às arranhadelas.
- MEU DEUS... é esta a imagem que os portugueses estão a dar no estrangeiro! - comentou um emigrante que trabalhava ali perto.

*
- Mais calmas?- perguntou Pipi entregando uma caneca de chá a Sofia.
- A culpa é dela! Se ela não tivesse...- ia a dizer Sofia, mas foi interrompida por Zandra.
- Não te armes em Santa! Só estás assim porque eu me adiantei!
- Ó minha vaca!
- CHEGA! - gritou Miriam, forçando o silêncio.- Ontem tive um dia mau, chateei-me com o Marco e tive de dormir com o Pipi!
- Obrigado Miriam... é bom saber que é mau dormir comigo! - disse Pipi simulando indignação. Do outro lado da sala, um homem olhava para ele com ar de desaprovação.
- Ah! Desculpa! Não quis dizer isso!
- EU percebi!- disse Pipi sorrindo-lhe.
- Mas pronto! Não quero ouvir mais discussões. E agora vou acordar o meu homem com um beijo.
Sofia revirou os olhos com a expressão. Zandra sorriu enternecida.
" O sorriso de Zandra está diferente hoje!"- pensou Pipi. Havia ali qualquer coisa de estranha. Nos últimos dias, parecia-lhe que Zandra colocava aquele sorriso falso na cara, por tudo e por nada. O que estaria ela a tramar?
" Quem será ela?"- perguntou-se a si próprio o Pipi.
*
Miriam subiu as escadas em direcção ao primeiro piso. O quarto onde dormira na noite anterior ficava à esquerda. O de Marco, à direita.
- Mas o que... - da porta da direita saía uma rapariga extremamente sorridente. Era a empregada da estalagem, a que trocava os lençóis e trazia o serviço de quartos.
- Bon giorno!
- Bon giorno- disse Miriam desconfiada, numa intensidade quase sussurrada.
A rapariga saiu dali. O coração de Miriam começou a bater mais forte. Seria ele capaz? Imagens da empregada sobre o seu namorado rasgaram-lhe a mente. O seu coração apertou-se mais, aumentando o bombear do sangue. Levou a mão ao bolso. Lá estava a chave do quarto de Marco. Tirou-a e colocou-a na fechadura. Lentamente, fê-la girar e depois puxou a maçaneta para baixo...
*
- Tens a certeza Miriam?
- Sim! Vamos. Vamos embora.
- Mas sabes quem foi?- Sofia baixou os olhos
- Deve ter sido a empregada!- Miriam chorava baba e ranho. Ela e a Sofia e preparavam a mala para partir.
- Mas ele...- ia perguntar Sofia.
- ELE ESTAVA NU SOFIA! - disse desatando a chorar.- NU! Por cima de lençóis todos revirados. E na cómoda estava uma caixa de preservativos abertos!
Pipi e Sofia calaram-se. Iriam partir no comboio em direcção a Roma, como assim desejara Miriam.
Zandra entrou no quarto.
- Boa Zandra! Já voltaste. Por favor, faz as malaas, vamos embora. -disse Miriam.
- Eu... não vou.
O silêncio tornou-se mais audível nesse momento. Todos pararam e voltaram-se para a alemã.
- Não vais?
- Não... pessoal, eu vou voltar para a Alemanha!
-JÁ?! -gritou Pipi descontroladamente.
- Sim! Vocês são muito boas pessoas, mas eu tenho de voltar para casa. Parto amanhã.
Se mais conversas, Zandra despediu-se dos três foragidos e voltou para o seu quarto. Sofia, Pipi e Miriam, partiram em direcção à estação. Por essa altura, Marco ainda dormia que nem um demónio...

segunda-feira, março 03, 2008

Disse-lhe que era a linha verde
Não queria falar mais com ele
Não queria falar mais com o cheiro de suor dele
com o cheiro de sangue dele.
Não ouvi a história dele
Sobre um carro...ele falava sobre um carro.

A sangue. Cheira sempre a sangue.
Todos os dias. O metro cheira a sangue.
É um mar de gente (serão pessoas?) debaixo da terra.
Somos como os mortos. Mas ainda cheiramos a sangue.
Todos os dias...

Há uma tragédia risonha em voltar à superfície.
Há uma instituição algures à espera de cada um de nós.
É para lá que eu vou.
O cheiro de suor na rua não é sificiente.
E é por isso que a rua cheira a fumo.

Menos ali. Ali onde está um audi.
Está em cima do passeio. Está atravessado no passeio.
E cheira a sangue. E a ódio.

O meu coração sorri quando as pessoas (são pessoas?) se encolhem.
Passou um carro funerário. Eles encolhem-se com nojo.
Fogem da carrinha, mas correm para o autocarro.
E o autocarro cheira a sangue.
A carrinha não. A carrinha nunca.

Oiço o meu pecado preferido buzinado por um porche.
Atravesso na mesma, não interessa.

Um velho é atirado para o canto do passeio.
Aquele canto junto da parede.
Porque não anda ao ritmo do sangue.
Porque atrapalha o fluir do sangue.
Porque já não cheira a sangue.
O velho é atirado para o canto da rua.
Naquele mesmo canto a juventude
Em demonstração de virilidade
amarelou o passeio. Cobriu o cheiro de sangue.

Chego à minha instituição.
Não olhei para o chão.
Pisei uma formiga.
E cheira a sangue. E fui eu que o derramei.
Alguém me diz que não importa.
Mas importa e eu sei. E peço desculpa a Alguém
(e Ele ouve?).

Dentro da minha instituição
Houve sangue derramado um dia.
Uma mancha que foi apagada.
Mas cheira a sangue.
Diz-se que foi apenas um louco...
Mas terá sido o mais são de todos?

Cheira a sangue, mas já não tenho medo do sangue.