2:59- Bisturi.- Aqui tem senhor doutor.O meu corpo tinha estabilizado, encontrando uma forma de acalmar a minha alma. Queria viver, por um lado, mas por outro...tanto sofrer, tanta raiva que nunca fora consumida... para quê? E para quê viver, se a minha existência irritava a mais fina das alma, se não era bem-vindo? Estava confuso, queria ir ou voltar, já não sabia.*
Lá estava eu, taciturno, sentado sobre os degraus da minha escola, vendo um jogo de futebol. Estava à defesa, como sempre, o único sítio onde "Fazia menos asneiras", segundo o meu próprio professor de educação física. Fora das grades verdes que delimitava o campo cheio de rapazes, as raparigas jogavam vólei, num ringue mais pequeno, rindo-se umas das outras, das figuras que faziam para acertar na bola... todas riam, excepto duas. Eram as raparigas mais populares da turma, com os seus 14 anos, vestindo-se "à adulto" e recusando-se a fazer qualquer que fosse o exercício. Tinham toneladas de rapazes atrás delas e nenhum as agradava. Eram senhoras do mundo que traziam nas mãos.
Nesse dia, como em quase todos, cochichavam uma com a outra sobre os seus colegas. Murmuravam risinhos e gozações, sorrindo aos alvos das suas chacotas, sempre escondendo a sua crueldade.
Falavam na altura de uma rapariga qualquer que tinha trazido uma saia "horrenda", demasiado alternativa e fora dos parâmetros normais, isto é, fora da noção de beleza das raparigas e rapazes que saiam, quase de fábricas, em molhos de produção em massa.
- Carlos! Olha a bola!
Corri e chutei. Pela primeira vez, a bola voou para a frente em direcção à baliza. É certo que não tinha marcado, mas pelo menos, não tinha feito auto-golo. No fim do jogo, os meus colegas, congratularam-me e seguimos para os vestiários. Quando saí, lá estavam elas, rindo agora de outra rapariga. Talvez pela blusa, ou porque gostava de qualquer coisa ou de alguém que não era suposto.
- Já viste Carlota? Como é que ela gosta dele? Ela não se manda?
- Sei lá. Ela até nem é feia, mas aqueles vestidinhos... ui.
O seu veneno, deixava-me mal disposto. Saí dali em direcção ao novo ginásio, para ouvir uma palestra de início do ano, dada pela directora da escola. Sentei-me ao lado de um colega, moreno, de olhos verdes ou azulados, já nem sei bem. E comecei a ouvir.
Aos poucos, apercebi-me das suas mãos, do seu corpo, e da sua beleza. Então compreendi o que era, mas não que estava destinado a sofrer. Sorri para mim e ri-me com a hipótese de ter alguma coisa com ele. Seria eu também "aquele menino bonito que não se manca?"
*
3:06
- Aspiração.
- Aqui tem doutor.
- Isto estava feio, mas o rapaz deve conseguir aguentar-se.
- Como é que alguém pode fazer isto uma pessoa?
- Todos somos capazes de tudo. E quem nos garante que não foi ele próprio que se tentou destruir?
- Doutor! - disse ela ultrajada
- Quem nos garante? Podia estar farto desta vida. Podia estar em sofrimento e pensou que era o que tinha a fazer. Gaze!
- Há sempre solução, doutor...
O doutor Galvão, assim era o seu nome, pousou a gaze e olhou a enfermeira nos olhos.
- Solução há sempre. Mas nem sempre um coração cego, a consegue ver.
*
A palestra chegou finalmente ao seu fim e saí dali. Trazia no rosto alegria estampada, porque finalmente me tinha encontrado. O mundo parecia cheio de possibilidades, de alegrias e de vitórias. Parecia que estava de novo bem...
- Achas mesmo? - ouvi. Era Carlota, falando com a sua amiga. Cochichavam de alguém.
- É.. não vês o jeito dele... ele é 'tou te a dizer!
- Não pode!
O meu estômago revirou-se. Senti a alma a tremer, a tentar fugir, a tentar abandonar o meu corpo. Foi então que ouvi aquilo que sempre ouvira. Paneleiro, eu era, dizia a outra rapariga, e como tal, não merecia viver.
*
3:24
- Deves estar a gozar com a minha cara!
- Outra vez doutor?
- Este rapaz está outra vez a morrer. Passem-me o material! Já!
*
Chorava. Num mundo perdido das minhas recônditas memórias, chorava... naquele sítio estranho onde antes tinha falado com a minha vizinha, chorava...
Todo o sofrimento, ou pelo menos assim pensava eu, aflorava-me a pele, ferindo-me lentamente e cruelmente, até eu gritar de dor. Mas a dor não era no corpo, era na alma. Não suportava a ideia de não gostarem de mim? De tanto que tinha dado, de tanto que tinha feito, como me podiam odiar? Não era eu que escolhia ser gay. Não se escolhe, aceita-se. É apenas um comportamento orgânico, uma resposta do meu corpo a outro. Como os homens amam as mulheres, pelas suas formas e hormonas, e as mulheres os homens, assim amava eu, quem não me queria...
Restava-me aceitar o que era e viver feliz. Mas como podia eu, se todos me negavam a felicidade? Como?
- Lutando.
- Quem está aí?
Uma voz e um vulto por entre o nevoeiro se fazia ouvir. Por trás das núvens obscuras do meu ser, uma rapariga de cabelos longos e preto, que não conhecia, falava-me. O seu nome era Joana, como assim se apresentou. Não me conhecia nem tinha nada a ver comigo. Apenas mais uma vez, a minha consciência tomava uma forma estranha mas estranhamente familiar. Teria sido alguém próximo noutra vida?
- Lutando contra aqueles que te querem mal...
- Mas para quê lutar. Sou um.. estou sozinho contra o mundo..
- Não estás sozinho nem abandonado. Procura aqueles que te sabem e querem proteger e sê feliz, mas vive!
- Não quero!- gritei! - não quero passar pelo mesmo uma e mais uma vez!
- A vida é um jogo vicioso, que anda em círculos. Como diz o ditado chinês, "Um relógio parado, está certo pelo menos duas vezes por dia". Nada acontece só por uma vez. Viverás esta tristeza uma e duas e três vezes. Só tu, podes fazê-la desaparecer...
*
3:37
- Isto está complicado!
- O coração dele está em perigo?
- Sim. Não o podemos reanimar muitas mais vezes... aliás, só o podemos reanimar, sem que haja lesão do pericárdio, por mais uam vez... é bom que ele lute.
O meu coração tinha já recomeçado a bater, há um minuto. Para o médico, não havia dúvidas. Estava a lutar contra mim próprio... restava saber quem poderia vencer...
*
- Carlinhos!
- Não me chames isso, porra!
- Pronto. Carlos, preferes?
- Não pipa! Odeio o nome!
- Daqui a dois anos, se quiseres, podes mudar.
- Para quê? Muda-se a farinha, o forro é o mesmo!
Estávamos numa das tantas aulas de laboratório, sentados naqueles bancos desconfortáveis. Tinha de me habituar, se queria ir para Química. Pipa não tinha ideia nenhuma para o seu futuro. Queria apenas uma coisa que lhe desse dinheiro, que não tivesse a ver directamente com saúde e que a satisfizesse.
- Já sabes para o que vais?
- Naaaa. Acho que vais ser na recta final, no 12º ano, que vou decidir.
Rimo-nos com a hipótese. Como se veio a confirmar, Pipa escolheu só no 12º ano, a área de Bioquímica. Eu, que antes queria brilhar no mundo da química, decidi desocupar-me dessas ideias e pensar numa coisa que me fizesse realmente feliz. E o que faria mais do que o canto ou qualquer coisa a ver com isso? Nesse ano tinha subido ao palco e todo o mundo me tinha aplaudido, quando cantei naquela noite o "Strangers in the night", tremendo de medo mas não dando a notar. Por momentos, senti-me querido, amado e feliz. As pessoas gostavam realmente de mim, era bom em qualquer coisa! Estava feliz... feliz e apaixonado...
Na frente da minha banca, uma cara familiar se sentava. Nas aulas normais, piscava-me os olhos e sentava-se ao meu lado. Fazia brincadeiras e fazia questão de me dar os bons dias com um sorriso enorme, chateando-me até eu responder. O mundo parecia perfeito... estava feliz e cheio de dúvidas. Estaria ele interessado em mim? O passado ficou para trás, no momento em que o ouvi dizer, tinha eu já 18 anos e não 16, que "estou demasiado preocupado e não estou a aproveitar para curtir com quem quero", numa viagem de finalistas, em que por três bocas ouvi aquela triste e mesma palavras. Uma delas, foi a dele.
Rapazes e raparigas cochichavam sobre mim, chamando-me Carlinhos à frente e a trás conspirando, todos interessados em saber se tinham ou não algo para me fazer sofrer. Todos, à excepção da Pipa e de outros poucos, me faziam de bobo da corte, o "Paneleiro" da turma... o pobre e coitado enfermo infeliz...
*
De novo estava noutro sítio. Agora sentado com pipa. Deitados estávamos sobre a relva, do que fora o pátio do meu antigo colégio. Eramos crianças, mas falando como adultos...
- Vais desistir?
- Não sei...
- É melhor que não... na próxima vida ou no além dou cabo de ti!
- Eu sei...
Rimo-nos um pouco e abraçamo-nos. Aquela era uma amiga de 14 anos, era uma pessoa de confiança. Com ela sentia-me seguro, tal como com todos os amigos meus. Com ela não ouviria nunca a palavra proibida, nunca sentiria ódios por ser quem sou. Ela e mais três pessoas, faziam-me sentir bem.
- Mas e se apartir daqui for igual?
- Não sei...mas e se não for?
- Mas e se for?
- E se não for? Podemos estar aqui a noite inteira se quiseres...não me vou calar com isto. Sabes que uma coisa aprendi com a vida...
- O quê?
Mais uma vez a consciência me falava. Os meus velhos ideais ao de cimo pareciam querer vir.
- Que a vida é equilíbrio.
- Equilíbrio?
- Sim... tudo no mundo tem ordem e caos. Tudo isto, incluindo nós, se gere por homeostasia. Quando algo de mau está a acontecer na nossa vida, é porque algo de bom, vem aí!
- Como sabes?
- Não sei... acredito! Acredito que sim, porque se não ninguém vivia, com medo de perder. Estás em tempestade, quem te garante que a seguir não virá a bonança?
- Não sei...mas isto é tão difícil...
- Ninguém disse que era fácil. - disse rindo-se.
Pipa desapareceu e eu fui deixado, desejando que tivesse em vida um volte-face da ampulheta, que controlava o meu equilíbrio...